domingo, 26 de agosto de 2012






Quem visita o Louvre encontra em uma das principais alas alguns quadros de Delacroix, entre eles um bastante citado por historiadores, críticos, etc., o quadro intitulado A Liberdade Guiando o Povo. Mas em outra ala, bem menor, vai se deparar com o quadro A Lagosta, pintura para pintores. O tema pricipal é a vida e a morte, mas é também um olhar romântico para a situação político e social da Europa.


Nesse quadro de Delacroix há uma discussão bem complexa sobre a vida e a morte, e o curioso é que a morte, está representada pelos animais em primeiro plano: as lagostas, a lebre e os pássaros pintados em "cores vivas", menos um réptil anfíbio, uma salamandra, que esta viva. E a salamandra é um ser mítico que está bem presente no imaginário de alguns povos. No lado direito, abaixo, há um plano, com uma mancha escura acima, que pode ser um muro, e nosso olhar não consegue ir além dele. No lado esquerdo, em contraponto, há um outro espaço, este com linhas inclinadas, como se esboçasse um caminho que nos possibilitasse chegar ao segundo plano onde se nota, em tons mais brandos, bem distantes, uns cavaleiros, portanto, uma representação de coisas vivas. Curioso esse contraste. Há ainda as questões cromáticas. Predomina um contraste alaranjado-violáceo que potencializado faz surgir um esverdeado, e isso era teorizado pelo pintor que afirmava que na natureza tudo se resumia ao acorde laranja, verde e violeta. Repare que os esverdeados no quadro, menos evidentes, estão todos rompidos. Ganham alguma evidência induzidos pelos alaranjados e violáceos. Portanto o colorido se afirma e acaba, assim, dialogando com as formas e daí enfatiza o narrativo, mas deixando-o subordinado à plasticidade. Delacroix, me parece, nos aponta para o enigmático e, como já disse, nos faz pensar na nossa própria condição, ou no miserere, isto é, na imperfeição própria dos homens. Por isso que digo que é uma pintura para pintores. Curioso é se constatar que um dos quadros mais comentados e reproduzidos de Delacroix seja A Liberdade Guiando o Povo. Logo depois o pintor, desencantado, se refugia em seu atelier onde nunca mais pintou quadros panfletários.

Entrevista com Paula Laranjeira

Poema de Silvana Leal

Os acordes da Cor

Silvana Leal

a não-cor como ancoragem
terceiro tempo nada absoluto

a cor quer romper o tom
a cor se faz em tempos diversos
a cor cai de tempos em tempos

a cor amanhece clara
depois vibra como nunca
logo após vira sombra
linguagem cromática do tempo

a cor sagrada da alma - a arte

Entrevista com José Maria Dias da Cruz

Por: Paula Ivony Laranjeira de Souza


PILS- Como nasceu o artista plástico José Maria Dias da Cruz?

JMDC- Gostaria de começar esta entrevista com um quadro que marcou o início de meu projeto plástico na década de sessenta. Foi somente na década de noventa que um amigo meu, BobN, ex-aluno, depois meu assistente no Parque Lage, que a imagem do quadro começou a circular, pois ele a colocou na Internet. 




Vamos então para as respostas.

Perde-se, pelo tempo, na minha memória. Eu era ainda muito criança e já desenhava compulsivamente. Na casa de meu pai não me faltava papel. Sempre que podia ia para a cidade mineira de Cataguases e ficava na casa de Francisco Inácio Peixoto, um dos fundadores da Revista Verde, em 1927, e fiz da família dele uma extensão da minha. O problema era lá encontrar papel suficiente. Usava, então, as folhas em branco dos livros da biblioteca dele. Aos 12 anos comecei a economizar o dinheiro. Ia a pé para o colégio para economizar. Comprei então as primeiras tintas a óleo e pintei meu primeiro quadro. Tudo foi feito em segredo infantil, pensava eu, mas claro, tanto o meu pai como o Peixoto até que me incentivavam.

PILS- José, o que acontece quando você tem em frente aos olhos uma tela em branco? Em que momento há o vislumbrar da fusão de cores ou imagens?

JMDC- Quando tenho uma tela em branco à frente o quadro já está pronto em minha cabeça. Gosto mais de pensar do que propriamente pintar.

PILS- Como você definiria a cor? Ela é aquilo que vemos ou há algum mistério em sua configuração?

JMDC- Como diz o filósofo Maturana, não vemos que não vemos. Daí Klee ter dito que o pintor torna visível o que se esconde. O mais complexo é que a cor não se deixa racionalizar, não obstante nos permite pensar inserida numa lógica nada absurda. Entretanto em relação a ela sentimo-nos limitados, pois além do mais, ela é enigmática. 

PILS- Em nossas conversas, você falou algumas vezes sobre seu objeto de estudo, Cézanne. Como nasceu o interesse por este artista?

JMDC- Desde cedo ficava horas tentando compreender um quadro. Tanto o meu pai como o Peixoto tinham bons livro sobre artes plásticas. Cézanne me intrigava, pois não o compreendia. Somente quando fui estudar em Paris com Emílio Pettoruti que ele me vez ver o que não compreendia, sem, contudo, me dar uma explicação convicente. Daí veio a paixão. Vez-me ver também outros pintores, como Ticiano, Poussin, Chardin, e Braque. Pettoruti também me mostrou como eram fracos como pintores artistas que eram considerados gênios, como Matisse e Picasso. Este último hoje inclusive é uma grife. Mostrou-me, em compensação, Braque, este artista ainda tão pouco estudado. Além de pintor foi também um intrigante pensador. Os pensamentos de Braque marcaram-me muito.

PILS- Fale-nos um pouco sobre Cézanne.

JMDC- Comecei a estudá-lo cedo mas não o compreendia. É um artista muito complexo. Há uma frase de Cézanne na qual ele diz que devemos “Tratar a natureza através do cone, da esfera e do cilindro [...].” Nas histórias das artes se substituía o cone pelo cubo. Levei tempo para entender que realmente não poderia se basear no cubo, pois ele disse que no espaço todos os objetos são convexos, o que excluiu, naturalmente, o cubo que é ortogonal. A distorção da frase do Cézanne incluindo o cubo, entretanto, fez fortuna. Até uma escola foi criada, o cubismo, que acabou reforçando a idéia de que Cézanne considerava realmente o cubo e por extensão as formas.  Outras frases dele me intrigavam. Uma na qual ele diz que “a luz não existe para o pintor, tem que ser substituída por uma outra coisa, a cor.”. Comecei a entender o porquê de seu rompimento com os impressionistas. Tem mais, ele dizia que à medida que a cor se harmoniza, mais a forma se precisa. Comecei a estudá-lo mais e intrigou-me uma outra frase dele na qual dizia que somente um cinza reina na natureza. Foi somente em 1986 que compreendi esse cinza o qual denominei de sempiterno. Comecei, então, a pensar em uma teoria das cores que descartava essa que se baseia em um círculo cromático que considera as cores com valores absolutos e as classifica em primária, secundária, etc. Percebi que este cinza é um pós ou pré-fenômeno, causa e efeito dos coloridos. Aliás, como observou Rilke, ele não existe. Eu digo que se manifesta na natureza. Compreendi que Cézanne estava fundando um outro olhar para as cores e que pensava no rompimento do tom, isto é, não o considerando como apenas misturas pigmentares, estas observadas por Duchamp quando denunciou a pintura retiniana. Observando as cores percebi que as pós-imagens alteravam no tempo a tonalidade das respectivas cores. Acabei compreendendo que há a cor abstrata substantiva, que é uma idéia platônica e estática, que subsiste por si só, e a cor concreta adjetiva, que está sempre se rompendo e que sua condição é ser no colorido. Mas Cézanne disse que era um primitivo pelas coisas novas que descobrira. Hoje creio que temos muito que estudá-lo. Ele antecipou muitas descobertas científicas, como a teoria do caos, os fractais e certamente outras geometrias que hão de vir. Uma geometria das cores, talvez. Deve-se aqui acrescentar que o mestre de Aix nunca pensou em pintar quadros que fossem ilustrações de teorias científicas. Vale até citarmos um pensamento de Braque; “A arte sobrevoa, a ciência anda apoiada.”

PILS- José, seu primeiro livro, A cor e o cinza, foi uma produção independente.  Como você ver o setor editorial para publicação de livros voltados à arte?

JMDC- Hoje, felizmente no Brasil tem-se publicado muitos livros de arte de boa qualidade com os incentivos fiscais. Mas para o meu primeiro livro não consegui esse patrocínio, eu mesmo tive que bancá-lo. Já o que recentemente publiquei sobre o cromatismo cezameano foi através da Fundação Catarinense de Cultura, o que me permitiu uma edição bem mais acurada.

PILS- O que o leitor encontrará em A cor e o cinza?

JMDC- Tanto esse, como no recém publicado, são livros inconclusos. Espero que anime outros artistas a estudarem uma série de questões que eu ainda estou pensando. Sobretudo o recalque da cor na cultura ocidental que se acentuou muito na contemporaneidade. Felizmente alguns críticos, historiadores da arte e artistas estão revendo essa questão.

PILS- Em 1996 numa enquete realizada pelo Jornal do Brasil entre críticos, colecionadores e artistas, você foi citado entre os 70 artistas brasileiros mais importantes do século XX. Qual a importância desse reconhecimento para o artista José Maria Dias da Cruz?

JMDC- Senti um peso, uma responsabilidade. Te confesso que não me envaideceu muito. Há tanta coisa ainda que estudar! Devo acrescentar que nas décadas de 60, 70 e 80 a crítica foi muito hostil com meu trabalho. Chegaram até escrever em um jornal de grande circulação que “inteiramente fora de propósito, equivocada e sem sentido é a pintura de José Maria Dias da Cruz.” Hoje na minha idade, chegando aos 75 anos em setembro, até penso como Cézanne; “Por que tão tarde, por que tantos sacrifícios?”

PILS- Desde a infância você convive com várias formas de manifestações artísticas: Artes plásticas, literatura, música...Como é crescer e se tornar artista neste país em que à grande maioria é negligenciada uma boa formação cultural? Você acredita que isso é um fator que contribui inversamente para a “proliferação” de bons representantes e frutos das artes e artistas?


JMDC- Creio que devemos pensar como ainda a educação neste nosso país é um problema gravíssimo. Professores mal pagos, projetos educacionais mal formulados. O mesmo acontece na área da cultura. Há ainda esse neo-liberalismo que através da mídia nivela tudo por baixo. Mas felizmente há bons artistas que compreendem bem essa deplorável situação, mesmo que marginalizados.


PILS- Observando um pouco da sua produção (pintura, livros, textos e entrevistas), vejo que há uma constante: Marques Rebelo. Você poderia nos dizer quem foi  Marques Rebelo (1907-1973).

JMDC- O fato é que escritores do porte de Graciliano Ramos, Antônio  Houaiss, João Cabral de Melo Neto, Millôr Fernandes, e poucos outros o consideravam melhor que Machado de Assis. Há provas. Claro, não somente como pai me influenciou. Tive um professor de pintura, Aldary Toledo, que me disse que se aprende pintura lendo-se poesia até mais do que somente livros teóricos. Além do mais Marques Rebelo foi uma pessoa que na década de 40 muito fez para a difusão das artes plásticas moderna no Brasil. Graças a ele uma primeira grande exposição de artistas modernos brasileiros saiu do Brasil e percorreu alguns países da América do Sul. Dela surgiu o primeiro livro de um crítico estrangeiro, o argentino José Romero Brest, analisando nossa produção artística moderna. Isso em 1945. Também fundou vários museus de arte moderna. O Museu de Santa Catarina foi o primeiro a ser fundado de fato em 1948. O de São Paulo foi criado de direito, uma vez que foi registrado em cartório. De fato só passou a funcionar em 1949.

PILS- José, as obras do seu pai, o Marques Rebelo, estão sendo reeditadas pela editora José Olympio. Gostaria que você esclarecesse por que um escritor do nível dele ficou tanto tempo com os livros sem novas edições? E como está sendo recebida pelos leitores as novas edições dos livros do Rebelo?

JMDC- Por uma fatalidade um  advogado psicopata se apropriou dos bens da família logo que meu pai morreu. A família ficou impedida de editá-lo, pois não possuía a documentação necessária. Mas eu sempre, contratando advogados, consegui que algo fosse publicado. Agora a Editora José Olimpio vai editar as obras completas de Marques Rebelo. Assim as novas gerações estão redescobrindo-o. Fiz muito por isso. Digo até mais. Procuro em meus trabalhos recuperar escritores e pintores que estão totalmente esquecidos. É o caso do escritor Cornélio Pena ou do pintor Martinho de Haro, por exemplo.

PILS- Quando se fala em arte, um conjunto variado de produções (música, literatura, as artes plásticas, a dança...). Por mais distintas que sejam, sempre encontramos a intersecção e/ou junção destes elementos em algumas obras. Em seu trabalho, há espaço para esta fusão de elementos? Como?

JMDC- Isso é uma característica da arte contemporânea. Apesar de ser um artista, como costuma-se dizer, pintor de carteirinha, já expus utilizando-me de vídeos, do espaço cibernético, dialogando com obras de outros artistas, etc.

Tem ainda os meus desenhos que denomino assemblages de poesia e pintura. Há questões plásticas que o discurso verbal não dá conta. Segue abaixo um exemplo. Nele procuro mostrar como descartei um círculo cromático absoluto e como compreendo o rompimento do tom.





PILS- Recentemente você publicou o seu segundo livro. O Cromatismo Cezannano. Gostaria que você falasse sobre ele. Como nasceu este livro?

JMDC- Como disse acima, começo a pintar depois de ter o quadro quase já pronto em minha cabeça. Para isso costumo fazer várias anotações, croquis, etc. Um dia percebi que eram tantas as anotações que resolvi organizá-las. Daí surgiu a idéia de publicá-las, como extensão de minha obra. Surgiram algumas edições do primeiro, A cor e o Cinza. O Cromatismo cezanneano é uma continuação

PILS- Em Cromatismo Cezanneano, você aborda duas questões: o serpenteamento e o cinza sempiterno. Como poderemos entender essas questões?

JMDC- primeiro vou falar sobre o serpenteamento. Desde cedo, adolescente ainda, um livro  me fascinava: era o Tratado da Pintura do Leonardo. Aqui abro um parêntesis. Até hoje não compreendo porque esse livro é pouco estudado nas escolas de arte. Noto que é muito mais estudado nas faculdades de filosofia. Enfim... Continuemos. Nele há uma frase que me intrigou. “Devemos observar com muito cuidado os limites de cada corpo e o modo como serpenteiam para julgar se suas voltas participam de curvaturas circulares ou concavidades angulares.” No princípio não compreendi nada, mas uma coisa me pareceu claro. Leonardo estava pensando muito mais sobre os limites dos corpos como uma questão bem complexa, e não o que se lê nas histórias das artes, ou seja, que ele introduziu o esfumato na pintura. Esfumato é apenas um procedimento. Com as minhas anotações e estudos comecei a compreender que Leonardo, ao contrário de Van Eyck no quadro O casal Arnolfini, não estava interessado em um espaço remoto, mas mostrar como uma burguesia ascendente via o mundo, ou seja, o espaço imediato. Daí ter compreendido o serpenteamento como o resultado que Leonardo encontrou para resolver uma questão de perspectiva biocular e qual era a visão de mundo dessa classe social ascendente na qual o ideal substituiu a fé.  Isso me levou a estender o serpenteamento para todo o espaço plástico.

Sobre o cinza sempiterno diria que começou quando procurei entender melhor uma frase de Cézanne na qual ele diz que “somente um cinza reina na natureza, mas alcançá-lo é de uma dificuldade espantosa.” Claro, não se refere às misturas pigmentares do branco e preto. Comecei, então, a compreender que Cézanne estava nos apontando para a necessidade de revermos as teorias cromáticas baseadas no espectro da luz. Isso me levou e pensar em uma outra teoria cromática. Descartei totalmente o círculo cromático construído a partir das descobertas de Newton. Isso me permitiu compreender um pouco melhor que a cor concreta adjetiva tem uma dimensão temporal.

Vale aqui observar o que Hélio Oiticica afirmou: “Há uma questão importante a ser pensada na pintura: a cor.”

PILS- Você traz em ainda neste livro uma observação sobre o olho. “É na convivência dos olhos com as formas e os coloridos do quadro que o espaço plástico se constrói de uma forma bastante dinâmica. Falando-se assim parece uma coisa muito difícil, mas não é. Depende do saber do olho”. Discorra um pouco sobre o olho e sua importância nas artes plásticas.


JMDC- Podemos começar citando algumas frases. Essa do Leonardo; “O olho é a janela da alma.”  Ou essas anotações de Wittgenstein que estão no Tractadus Lógico-philosophicus:
5,633 Onde no mundo se há de notar um sujeito metafísico?
Tu dizes que aqui se está inteiramente como diante do olho e do campo visual, mas tu não vês realmente o olho. “E não há coisa no campo visual que leve à conclusão de que é vista por um olho.”

Uma outra do poeta Michael Palmer; “As diversas distâncias entre o olho e pálpebra.”

Estão aqui algumas questões que ainda terei muito que pensar. Sobretudo considerando o que Maturana afirmou e que acima citei: “Não vemos que não vemos.”

Ao menos podemos afirmar o quanto os pintores têm ainda que estudar.
  
PILS-  O que motiva e/ou inspira o artista plástico, o escritor e estudioso José Maria Dias da Cruz?

Diria que sem a pintura minha vida perderia totalmente o sentido. É uma questão de sobrevivência e, por conseqüência, ética e estética. Aqui tenho que ressaltar que pintar para mim não é estar com um pincel à mão com uma tela à frente. È, sobretudo, pensar. Procurar uma outra lógica que nos permita entender os vários níveis de realidade e percepção. E mais. Entender o que Cézanne afirmou: “A arte é uma religião.”

Para terminar um outro quadro, este recente: “Observando uma maria-sem-vergonha, ou vários caminhos para o infinito.”


sábado, 25 de agosto de 2012

Algum as anotações sobre as cores


Algumas anotações sobre as cores
A cor é dentro do pensamento verbal e dentro das lógicas decorrentes desse pensamento, impossível de ser racionalizada. No século XVIII criou-se um círculo cromático no qual as cores eram classificadas em primárias, secundárias e com valores absolutos, com a pretensão de explicar todos os fenômenos cromáticos da Natureza e, assim, aprisioná-las dentro de uma mentalidade quantitativa na medida em que ficavam subordinadas às formas, estas mais racionais. Com isso, ficou eclipsada a possibilidade de se pensar as cores e o colorido fora do modelo imposto por este círculo. Além do mais, este círculo cromático é regido por uma lógica que criou os conceitos de cores puras, pastéis e neutras e, assim, atrelando as questões cromáticas ao discurso verbal. Dentro do pensamento plástico a cor é enigmática, portanto passível de ser percebida por outra lógica, como diz Cézanne, nada absurda.
             Vale ressaltar que a partir desse círculo classificamos as harmonias em termos absolutos e em conseqüência, igualmente as cores. O mesmo em relação aos contrastes. Todos com valores absolutos e estáticos. Nesse círculo as cores são explicadas pelas misturas pigmentares, as quais foram mais tarde denunciadas por Duchamp. Claro, estudam-se alguns outros fenômenos como os contrastes simultâneos, por exemplo. Mas na base está um pensamento lógico, atualmente questionado, decorrente do discurso verbal. A partir desse círculo cromático classificaram-se as harmonias. Por exemplo, estas seriam consoantes, dissonantes e assonantes. (No pensamento plástico como a cor pode ser assonante ou neutra, vale dizer, uma não-cor?). Essas harmonias consideram uma mentalidade, sobretudo quantitativa, ou seja, explicam-se considerando ritmo como recorrência pressentida, que é racional e a cor ficando subordinada às formas. E assim bem longe do que Cézanne nos adverte: “Na natureza tudo está colorido.” A partir do círculo cromático absoluto ficamos presos à lógica aristotélica. Ou seja, à lógica do terceiro excluído, lógica esta que afirma que uma coisa não pode ser verdadeira e falsa simultaneamente.  Esse círculo excluiu o que hoje nos é familiar, as incertezas.
            Assim, fugindo deste aprisionamento, nos meus estudos descartei o círculo cromático que classifica as cores em primárias e secundárias. Descartando-se o círculo cromático absoluto, como, parece-me, também o fez Cézanne, passamos a considerar um terceiro termo. A dimensão espaço-temporal da cor, pelo rompimento do tom, nos permite entender o cinza sempiterno como um pré ou pós-fenômeno. Vale dizer, um cinza que não existe, como observou Rilke, mas que se manifesta na natureza..
            Escrevi um livro intitulado A Cor e o Cinza. Nele refiro-me ao conflito entre a percepção sensível e a linguagem. Nesse livro, para reforçar a disparidade entre a cor e o nome que lhe damos, cito o filósofo Mário Guerreiro, que diz:
“Sim, pois onde estão as cores puras no mundo percebido? Na verdade, elas pertencem ao mundo nomeável, mas esse mundo nomeado reparte o mundo percebido e o organiza de acordo com essa coisa enigmática que é o critério de relevância implícito na língua estruturada. Parece que se abre um abismo entre a percepção sensível e a linguagem, entre as qualidades percebidas e as qualidades nomeáveis, mas ficamos em dúvida se deveríamos concordar com a idéia de que o percebido só se faz passando pelo crivo na nomeação, como se a linguagem estivesse filtrando a percepção, canalizando-a no sentido de só poder captar certos padrões em detrimento de outros. Com certeza este é um problema que teria de ser colocado para uma fenomenologia, onde uma incursão nos domínios da pintura seria, certamente, bastante esclarecedora.”
            Nesse sentido, podemos fazer com que haja uma convivência entre a percepção sensível e a linguagem verbal. Neste caso, consideramos a cor abstrata substantiva, que subsiste por si mesma na medida em que sua substância não se altera, é nomeável e é uma idéia platônica, e a cor concreta adjetiva, cuja condição é ser no colorido e está sempre se rompendo, possuindo uma dimensão temporal. Podemos, assim, lidar simultaneamente tanto com a percepção sensível e a linguagem verbal.
            Daí procurei me entender pelo pensamento plástico e estudei a obra de Cézanne que afirmou que a luz não existe para o pintor e, conseqüentemente, tem que ser substituída por uma outra coisa, a cor. Portanto o mestre de Aix não se interessou pelo cromatismo impressionista. Disse mais ainda, que somente um cinza reina na natureza dificílimo de alcançar. Não se trata obviamente de um cinza baseado na mistura do branco com o preto, pois esse não oferece nenhuma dificuldade. Digo que Cézanne nos preparou para pensar no cinza sempiterno, como passei a denominá-lo.
             Inclui-se na lógica da cor a questão do serpenteamento vinciano. Leonardo no Tratado da Pintura diz que devemos observar com muito cuidado os limites de qualquer corpo para julgar se suas voltas participam de curvaturas circulares ou concavidades angulares, uma questão bem mais complexa do que afirmar, como se vê nas histórias das artes, que ele introduziu na pintura o esfumato. Este é apenas um procedimento e não uma questão teórica.
            Citemos agora a famosa frase de Cézanne na qual ele reforça que tratar a natureza através do cone, esfera e cilindro não implica em uma geometrização considerando esses sólidos geométricos como os que possibilitam a construção do espaço pictórico tomando-os como formas históricas da construção deste espaço. Afinal Cézanne afirmou que Devemos observar a natureza como ninguém a viu antes. Interessante é que podemos compreender a afirmação de Duchamp na qual diz que o cubismo tem inicio em Cézanne, e passa pelo fauvismo, (em minha opinião, sobretudo por Braque).
            Consideraríamos a geometria dos fractais, e novamente o cinza sempiterno, que estaria presente tanto no todo como nas partes. Assim em uma fração teríamos também um elemento contido no todo, no caso, o cinza sempiterno. Consideraríamos, também, a teoria do caos, e a partir daí pensaríamos no processo contínuo de organização e desorganização quando estados de entropia máxima são observados, o que metaforicamente nos levaria a considerar a questão de vida, morte e ressurreição.
            Tudo isso nos permite realmente pensarmos em uma geometria das cores considerando-se, entre outras, a topologia na qual, além das transformações e deformações contínuas, o cinza sempiterno seria uma fronteira. Ou na geometria dos fractais e novamente aquele cinza lhe dá consistência.
            Podemos imaginar também que essas surdas questões pertinentes ao pensamento plástico e, por extensão, às artes visuais, poderão, talvez, ser mais bem compreendidas pelas geometrias que hão de vir. Como, por exemplo, uma geometria das cores.
                        José Maria Dias da Cruz – Florianópolis, 2012

Jacinto Lageira

"Através das manipulações, dos tatos e contatos depositados no objeto e localizáveis
pelo olho, depois outra vez transponíveis em valores hápticos, a alteridade não
é unicamente aquela, irredutível, do objeto inventado, ficcional e imaginado, é
igualmente o traço do outro incorporado no objeto. É surpreendente que quando
estamos suficientemente próximos da obra, nós experimentamos como que o
toque do outro, e, através desse tato materializado diversamente no objeto, como
que sua pele. O gestual facilmente visível sobre as superfícies das obras de arte
testemunha os diferentes graus de tatilidade, de engajamento epidérmico, carnal,
mais ou menos leve, violento ou doce. Isso é de resto válido para as películas
de filmes cinematográficos e fotográficos, mesmo dos vídeos, o grão da imagem
na tela ou no papel que pode igualmente ser experimentado, os próprios termos
da película ou do grão que pertencem, de resto, ao domínio do vocabulário
dermatológico. Se, de fato, “o que há de mais profundo no homem é a pele”,
então todas essas superfícies, películas, camadas que recobrem e que são as obras
de arte em parte guardam o traço dessa profundidade, fazendo mesmo com que se
manifeste. Como que virando a pele sobre si mesma, fazendo com que a obra de
arte proporcione uma relação de reversibilidade carnal em que não toco o objeto,
mas na qual é antes ele que vem ao meu encontro e me toca. “Ser tocado” por uma
obra consiste metaforicamente em ser tocado pela alteridade do objeto e daquele
ou daquela que nele se encontra inscrito indiretamente ou na superfície, mas de
modo que a pele dos seres e das coisas seja também essa materialidade, sem a qual
nosso imaginário seria insensível à sua pele."
Jacinto Lageira

Notas sobre um poliptico


Ocupo-me nesse políptico (8 quadros) das questões do tátil e do háptico. O suporte é de madeira, aquelas tábuas de pinho para obras. São diversos os comprimentos, de 40cm a 60cm, e a altura uma só, 30cm. Não tratei a madeira. Deixei-a crua, com as marcas dos veios e das nódoas. Em uma parte pintei um colorido no qual se manifesta o cinza  sempiterno. Na outra uma cor, um rosa, por exemplo, não me importando em relacionar as duas pelos princípios de proporcionalidade que se dá às formas, ou seja, aqueles princípios vasarianos. Lidei, portanto com os valores táteis do suporte, que fica bem evidente que é um pedaço de uma tábua. Apesar de pintadas vê-se que é madeira não tratada para outro fim senão o de servir para armação de concretagem em obras de construção. A pintura em rosa não vela os veios e as nódoas. As laterais não foram pintadas, nelas percebe-se a madeira. Mas a cor pintada chapada nos leva ao conceito de cor abstrata substantiva, em apenas duas dimensões, e assim os valores hápticos se manifestam.