Entrevista com José Maria Dias da Cruz
Por: Paula Ivony Laranjeira de Souza
PILS- Como nasceu o artista
plástico José Maria Dias da Cruz?
JMDC- Gostaria de começar esta
entrevista com um quadro que marcou o início de meu projeto plástico na década
de sessenta. Foi somente na década de noventa que um amigo meu, BobN, ex-aluno,
depois meu assistente no Parque Lage, que a imagem do quadro começou a
circular, pois ele a colocou na Internet.
Vamos então para as respostas.
Perde-se, pelo tempo, na minha
memória. Eu era ainda muito criança e já desenhava compulsivamente. Na casa de
meu pai não me faltava papel. Sempre que podia ia para a cidade mineira de
Cataguases e ficava na casa de Francisco Inácio Peixoto, um dos fundadores da
Revista Verde, em 1927, e fiz da família dele uma extensão da minha. O problema
era lá encontrar papel suficiente. Usava, então, as folhas em branco dos livros
da biblioteca dele. Aos 12 anos comecei a economizar o dinheiro. Ia a pé para o
colégio para economizar. Comprei então as primeiras tintas a óleo e pintei meu
primeiro quadro. Tudo foi feito em segredo infantil, pensava eu, mas claro,
tanto o meu pai como o Peixoto até que me incentivavam.
PILS- José, o que acontece quando
você tem em frente aos olhos uma tela em branco? Em que momento há o vislumbrar
da fusão de cores ou imagens?
JMDC- Quando tenho uma tela em
branco à frente o quadro já está pronto em minha cabeça. Gosto mais de pensar
do que propriamente pintar.
PILS- Como você definiria a cor?
Ela é aquilo que vemos ou há algum mistério em sua configuração?
JMDC- Como diz o filósofo
Maturana, não vemos que não vemos. Daí Klee ter dito que o pintor torna visível
o que se esconde. O mais complexo é que a cor não se deixa racionalizar, não
obstante nos permite pensar inserida numa lógica nada absurda. Entretanto em
relação a ela sentimo-nos limitados, pois além do mais, ela é enigmática.
PILS- Em nossas conversas, você
falou algumas vezes sobre seu objeto de estudo, Cézanne. Como nasceu o
interesse por este artista?
JMDC- Desde cedo ficava horas
tentando compreender um quadro. Tanto o meu pai como o Peixoto tinham bons
livro sobre artes plásticas. Cézanne me intrigava, pois não o compreendia.
Somente quando fui estudar em Paris com Emílio Pettoruti que ele me vez ver o
que não compreendia, sem, contudo, me dar uma explicação convicente. Daí veio a
paixão. Vez-me ver também outros pintores, como Ticiano, Poussin, Chardin, e
Braque. Pettoruti também me mostrou como eram fracos como pintores artistas que
eram considerados gênios, como Matisse e Picasso. Este último hoje inclusive é
uma grife. Mostrou-me, em compensação, Braque, este artista ainda tão pouco
estudado. Além de pintor foi também um intrigante pensador. Os pensamentos de
Braque marcaram-me muito.
PILS- Fale-nos um pouco sobre Cézanne.
JMDC- Comecei a estudá-lo cedo
mas não o compreendia. É um artista muito complexo. Há uma frase de Cézanne na
qual ele diz que devemos “Tratar a natureza através do cone, da esfera e do
cilindro [...].” Nas histórias das artes se substituía o cone pelo cubo. Levei
tempo para entender que realmente não poderia se basear no cubo, pois ele disse
que no espaço todos os objetos são convexos, o que excluiu, naturalmente, o
cubo que é ortogonal. A distorção da frase do Cézanne incluindo o cubo,
entretanto, fez fortuna. Até uma escola foi criada, o cubismo, que acabou
reforçando a idéia de que Cézanne considerava realmente o cubo e por extensão as
formas. Outras frases dele me
intrigavam. Uma na qual ele diz que “a luz não existe para o pintor, tem que
ser substituída por uma outra coisa, a cor.”. Comecei a entender o porquê de
seu rompimento com os impressionistas. Tem mais, ele dizia que à medida que a
cor se harmoniza, mais a forma se precisa. Comecei a estudá-lo mais e intrigou-me
uma outra frase dele na qual dizia que somente um cinza reina na natureza. Foi
somente em 1986 que compreendi esse cinza o qual denominei de sempiterno.
Comecei, então, a pensar em uma teoria das cores que descartava essa que se
baseia em um círculo cromático que considera as cores com valores absolutos e
as classifica em primária, secundária, etc. Percebi que este cinza é um pós ou
pré-fenômeno, causa e efeito dos coloridos. Aliás, como observou Rilke, ele não
existe. Eu digo que se manifesta na natureza. Compreendi que Cézanne estava
fundando um outro olhar para as cores e que pensava no rompimento do tom, isto
é, não o considerando como apenas misturas pigmentares, estas observadas por
Duchamp quando denunciou a pintura retiniana. Observando as cores percebi que as
pós-imagens alteravam no tempo a tonalidade das respectivas cores. Acabei compreendendo
que há a cor abstrata substantiva, que é uma idéia platônica e estática, que
subsiste por si só, e a cor concreta adjetiva, que está sempre se rompendo e que
sua condição é ser no colorido. Mas Cézanne disse que era um primitivo pelas
coisas novas que descobrira. Hoje creio que temos muito que estudá-lo. Ele
antecipou muitas descobertas científicas, como a teoria do caos, os fractais e
certamente outras geometrias que hão de vir. Uma geometria das cores, talvez. Deve-se
aqui acrescentar que o mestre de Aix nunca pensou em pintar quadros que fossem ilustrações
de teorias científicas. Vale até citarmos um pensamento de Braque; “A arte
sobrevoa, a ciência anda apoiada.”
PILS- José, seu primeiro livro, A cor e o cinza, foi uma produção
independente. Como você ver o setor
editorial para publicação de livros voltados à arte?
JMDC- Hoje, felizmente no Brasil
tem-se publicado muitos livros de arte de boa qualidade com os incentivos
fiscais. Mas para o meu primeiro livro não consegui esse patrocínio, eu mesmo
tive que bancá-lo. Já o que recentemente publiquei sobre o cromatismo cezameano
foi através da Fundação Catarinense de Cultura, o que me permitiu uma edição bem
mais acurada.
PILS- O que o leitor encontrará
em A cor e o cinza?
JMDC- Tanto esse, como no recém
publicado, são livros inconclusos. Espero que anime outros artistas a estudarem
uma série de questões que eu ainda estou pensando. Sobretudo o recalque da cor
na cultura ocidental que se acentuou muito na contemporaneidade. Felizmente
alguns críticos, historiadores da arte e artistas estão revendo essa questão.
PILS- Em 1996 numa enquete realizada pelo Jornal
do Brasil entre críticos, colecionadores e artistas, você foi citado
entre os 70 artistas brasileiros mais importantes do século XX. Qual a
importância desse reconhecimento para o artista José Maria Dias da Cruz?
JMDC- Senti um peso, uma
responsabilidade. Te confesso que não me envaideceu muito. Há tanta coisa ainda
que estudar! Devo acrescentar que nas décadas de 60, 70 e 80 a crítica foi muito hostil
com meu trabalho. Chegaram até escrever em um jornal de grande circulação que
“inteiramente fora de propósito, equivocada e sem sentido é a pintura de José
Maria Dias da Cruz.” Hoje na minha idade, chegando aos 75 anos em setembro, até
penso como Cézanne; “Por que tão tarde, por que tantos sacrifícios?”
PILS- Desde a infância você convive com várias
formas de manifestações artísticas: Artes plásticas, literatura, música...Como
é crescer e se tornar artista neste país em que à grande maioria é
negligenciada uma boa formação cultural? Você acredita que isso é um fator que
contribui inversamente para a “proliferação” de bons representantes e frutos das
artes e artistas?
JMDC- Creio que devemos pensar como ainda
a educação neste nosso país é um problema gravíssimo. Professores mal pagos,
projetos educacionais mal formulados. O mesmo acontece na área da cultura. Há
ainda esse neo-liberalismo que através da mídia nivela tudo por baixo. Mas
felizmente há bons artistas que compreendem bem essa deplorável situação, mesmo
que marginalizados.
PILS- Observando um pouco da sua produção (pintura,
livros, textos e entrevistas), vejo que há uma constante: Marques Rebelo. Você
poderia nos dizer quem foi Marques
Rebelo (1907-1973).
JMDC- O fato é que escritores do
porte de Graciliano Ramos, Antônio
Houaiss, João Cabral de Melo Neto, Millôr Fernandes, e poucos outros o
consideravam melhor que Machado de Assis. Há provas. Claro, não somente como
pai me influenciou. Tive um professor de pintura, Aldary Toledo, que me disse
que se aprende pintura lendo-se poesia até mais do que somente livros teóricos.
Além do mais Marques Rebelo foi uma pessoa que na década de 40 muito fez para a
difusão das artes plásticas moderna no Brasil. Graças a ele uma primeira grande
exposição de artistas modernos brasileiros saiu do Brasil e percorreu alguns
países da América do Sul. Dela surgiu o primeiro livro de um crítico
estrangeiro, o argentino José Romero Brest, analisando nossa produção artística
moderna. Isso em 1945. Também fundou vários museus de arte moderna. O Museu de
Santa Catarina foi o primeiro a ser fundado de fato em 1948. O de São Paulo foi
criado de direito, uma vez que foi registrado em cartório. De fato só
passou a funcionar em 1949.
PILS- José, as obras do seu pai, o Marques
Rebelo, estão sendo reeditadas pela editora José Olympio. Gostaria que você
esclarecesse por que um escritor do nível dele ficou tanto tempo com os livros
sem novas edições? E como está sendo recebida pelos leitores as novas edições
dos livros do Rebelo?
JMDC- Por uma fatalidade um advogado psicopata se apropriou dos bens da
família logo que meu pai morreu. A família ficou impedida de editá-lo, pois não
possuía a documentação necessária. Mas eu sempre, contratando advogados,
consegui que algo fosse publicado. Agora a Editora José Olimpio vai editar as
obras completas de Marques Rebelo. Assim as novas gerações estão
redescobrindo-o. Fiz muito por isso. Digo até mais. Procuro em meus trabalhos
recuperar escritores e pintores que estão totalmente esquecidos. É o caso do escritor
Cornélio Pena ou do pintor Martinho de Haro, por exemplo.
PILS- Quando se fala em arte, um conjunto variado de
produções (música, literatura, as artes plásticas, a dança...). Por mais
distintas que sejam, sempre encontramos a intersecção e/ou junção destes
elementos em algumas obras. Em seu trabalho, há espaço para esta fusão de
elementos? Como?
JMDC- Isso é uma característica
da arte contemporânea. Apesar de ser um artista, como costuma-se dizer, pintor
de carteirinha, já expus utilizando-me de vídeos, do espaço cibernético,
dialogando com obras de outros artistas, etc.
Tem ainda os meus desenhos que
denomino assemblages de poesia e pintura. Há questões plásticas que o discurso
verbal não dá conta. Segue abaixo um exemplo. Nele procuro mostrar como
descartei um círculo cromático absoluto e como compreendo o rompimento do tom.
PILS- Recentemente você publicou o seu segundo livro. O Cromatismo Cezannano. Gostaria que
você falasse sobre ele. Como nasceu este livro?
JMDC- Como disse acima, começo a
pintar depois de ter o quadro quase já pronto em minha cabeça. Para isso
costumo fazer várias anotações, croquis, etc. Um dia percebi que eram tantas as
anotações que resolvi organizá-las. Daí surgiu a idéia de publicá-las, como
extensão de minha obra. Surgiram algumas edições do primeiro, A cor e o Cinza.
O Cromatismo cezanneano é uma continuação
PILS- Em Cromatismo Cezanneano, você aborda duas questões:
o serpenteamento e o cinza sempiterno. Como poderemos entender essas questões?
JMDC- primeiro vou falar sobre o
serpenteamento. Desde cedo, adolescente ainda, um livro me fascinava: era o Tratado da Pintura do
Leonardo. Aqui abro um parêntesis. Até hoje não compreendo porque esse livro é
pouco estudado nas escolas de arte. Noto que é muito mais estudado nas
faculdades de filosofia. Enfim... Continuemos. Nele há uma frase que me
intrigou. “Devemos observar com muito cuidado os limites de cada corpo e o modo
como serpenteiam para julgar se suas voltas participam de curvaturas circulares
ou concavidades angulares.” No princípio não compreendi nada, mas uma coisa me
pareceu claro. Leonardo estava pensando muito mais sobre os limites dos corpos
como uma questão bem complexa, e não o que se lê nas histórias das artes, ou
seja, que ele introduziu o esfumato na pintura. Esfumato é apenas um
procedimento. Com as minhas anotações e estudos comecei a compreender que
Leonardo, ao contrário de Van Eyck no quadro O casal Arnolfini, não estava
interessado em um espaço remoto, mas mostrar como uma burguesia ascendente via
o mundo, ou seja, o espaço imediato. Daí ter compreendido o serpenteamento como
o resultado que Leonardo encontrou para resolver uma questão de perspectiva
biocular e qual era a visão de mundo dessa classe social ascendente na qual o
ideal substituiu a fé. Isso me levou a
estender o serpenteamento para todo o espaço plástico.
Sobre o cinza sempiterno diria
que começou quando procurei entender melhor uma frase de Cézanne na qual ele
diz que “somente um cinza reina na natureza, mas alcançá-lo é de uma
dificuldade espantosa.” Claro, não se refere às misturas pigmentares do branco
e preto. Comecei, então, a compreender que Cézanne estava nos apontando para a
necessidade de revermos as teorias cromáticas baseadas no espectro da luz. Isso
me levou e pensar em uma outra teoria cromática. Descartei totalmente o círculo
cromático construído a partir das descobertas de Newton. Isso me permitiu
compreender um pouco melhor que a cor concreta adjetiva tem uma dimensão
temporal.
Vale aqui observar o que Hélio
Oiticica afirmou: “Há uma questão importante a ser pensada na pintura: a cor.”
PILS- Você traz em ainda neste livro uma observação sobre
o olho. “É na convivência dos olhos com as formas e os coloridos do
quadro que o espaço plástico se constrói de uma forma bastante dinâmica.
Falando-se assim parece uma coisa muito difícil, mas não é. Depende do saber do
olho”. Discorra um pouco sobre o olho e sua importância nas artes
plásticas.
JMDC- Podemos começar citando algumas frases. Essa do
Leonardo; “O olho é a janela da alma.”
Ou essas anotações de Wittgenstein que estão no Tractadus
Lógico-philosophicus:
“
5,633 Onde no mundo se há de notar um sujeito metafísico?
Tu dizes que aqui se está inteiramente como diante do olho
e do campo visual, mas tu não vês realmente o olho. “E não há coisa no campo
visual que leve à conclusão de que é vista por um olho.”
Uma outra do poeta Michael Palmer; “As diversas distâncias
entre o olho e pálpebra.”
Estão aqui algumas questões que ainda terei muito que
pensar. Sobretudo considerando o que Maturana afirmou e que acima citei: “Não
vemos que não vemos.”
Ao menos podemos afirmar o quanto os pintores têm ainda
que estudar.
PILS- O que motiva
e/ou inspira o artista plástico, o escritor e estudioso José Maria Dias da
Cruz?
Diria que sem a pintura minha vida perderia totalmente o
sentido. É uma questão de sobrevivência e, por conseqüência, ética e estética. Aqui
tenho que ressaltar que pintar para mim não é estar com um pincel à mão com uma
tela à frente. È, sobretudo, pensar. Procurar uma outra lógica que nos permita
entender os vários níveis de realidade e percepção. E mais. Entender o que Cézanne
afirmou: “A arte é uma religião.”
Para terminar um outro quadro, este recente: “Observando
uma maria-sem-vergonha, ou vários caminhos para o infinito.”